FESTA DE SÃO JOÃO
guignard fala de seus quadros da arte em geral e confessa dominar melhor atualmente a difícil paisagem mineira
VIANA, J. Guignard fala de seus quadros, da arte em geral e confessa dominar melhor atualmente a difícil paisagem mineira. In: Diário de Minas. Belo Horizonte: 14 de dezembro de 1950.
O atelier de Guignard fica à rua Rio de Janeiro, numa esquina vigiada de uma lado, pela austera Casa dos Redentoristas e, do outro, pelo desastrado Cine Tupi.
É um quarto simples e afável, pequeno e acolhedor, abrigando uma grande cordialidade que se desdobra em abraços e gentilezas as mais inesperadas, entre exclamações, uma cama duas cômodas sóbrias, santos coloniais enfeitados de bolas de vidro multicor, tapetes pelo chão e pelas paredes também cobertas de recortes, quadros, reproduções e uma figa aureolada por um círculo de jacarandá.
Há ainda uma infinidade de compensados, livros, revistas, jornais, boinas, palhetas, tintas, papéis, jarras (mais cheias de pincéis que flores), garrafas de água raz e conhaque, latas de avelã vazias, martelos, alicates, cadeiras antigas, cavaletes, um par de botas, vários de sapatos, uma pia envergonhada num canto, um espelho, um vaso de louça, certamente procedente de alguma baronesa vaidosa, coberto de rosas esmaltadas a fogo, eliminando a mais remota associação de idéias, e mais não se sabe quantos mil objetos e instrumentos que emprestam a todos quarto de um artista verdadeiro essa atmosfera de sonho e ação invisível, por certo parecida, pelo menos ao repórter, à germinação imperceptível de uma semente sob a terra sobre a qual se elevam os edifícios, acontece o amor e se prepara o aparecimento das nuvens.
Ali estivemos com Guignard e com ele conversamos sobre muitos assuntos de seu ofício, e principalmente, a respeito da exposição em que juntamente com Mário Silesio, Heitor Coutinho, Amilcar de Castro Filho, Marília Giannetti, Maria Helena, Alinda, seus discípulos, exporá suas últimas criações, a se realizar amanhã, no 4º andar do Hotel Financial, às 20 horas.
A PINTURA AINDA ESTÁ EM 1840.
Enquanto nos mostrava seus trabalhos mais recentes, selecionando-os em companhia de Mário Silésio e Petrônio Bax, um novo que vem revelando vocação e sensibilidade para a pintura, Mestre Guignard foi respondendo as perguntas que formulávamos:
- Guignard: Infelizmente, para a maioria de nossa gente, a pintura ainda está em 1840. Por deficiência de educação estética, nunca de sensibilidade, interpretam o fenômeno artístico dentro de um critério, ou de uma falta de critério, melhor se expressaria, que se mantém prisioneiro de um triângulo formado por um pieguismo morno, um comodismo retrógado e um parnasianismo naturalístico e inconsciente. Ora esse critério de nossa gente, situa-se num falso ambiente de receptividade artística, como seja o academicismo, que sempre existiu sem deixar a marca de uma verdadeira deturpação dos legítimos valores estéticos.
EXEMPLO A SER IMITADO
O grande paisagista mineiro mostra-nos um belíssimo Lagoa Santa em que se nota, sem esforço, como a sensibilidade e a técnica podem prender numa tela toda a vida, todo o incessante fluir da natureza. E como perguntássemos a ele a que atribuir esse atraso de nosso povo com relação ás artes plásticas, Guignard foi falando rápido, tanto quanto a descida de um Cristo angustiado do prego que o segurava à parede a insignificante área da cabeça do repórter .
- Guignard: Já acentuei que sensibilidade não falta ao brasileiro. A sua música é um exemplo entre muitos. Mas, com relação as artes plásticas sensibilidade só não basta. É preciso que o povo veja, esteja sempre em contato com obras de real valor, assista a conferências, frequente mostras de arte, acostume afinal com os valores do mundo estético. Agora, pergunto, porque também eu tenho o direito de perguntar: - temos tido dessas coisas (museus, exposições, conferências) entre nós em número suficiente e realizados dentro de um plano racional, principalmente nas províncias? Evidentemente que não. Faltam-nos exposições regulares, publicações especializadas, bolsas de estudo em número suficiente e condições econômicas bastantes para não estiolar as vocações, cursos, etc. O pouco que possuímos devemo-lo ao governo, nos planos federal, estadual e municipal, e assim mesmo dentro das suas poucas possibilidades. O exemplo dado pelos capitalistas bandeirantes deveria ser imitado em todos os Estados, principalmente em Minas, já dona de uma tradição artística sem precedentes no país, considerando entre outros fatores, a obra de Aleijadinho e Mestre Ataíde.
35 TELAS DE GUIGNARD
Agora é em Ouro Preto que Guignard retoca depois uma Sabará (verde coberto de casinhas brancas), em seguida flores que a tela guarda como canteiros de um jardim, mas a conversa continua já desta vez, sobre a exposição de amanhã:
- Guignard: Como você pode ver, estou com quantidade de trabalhos que permite a seleção de pelo menos 35 telas: paisagens de cidades mineiras, flores, cabeças de Cristo, santos, retratos. Além de meus trabalhos, serão expostos óleos de Heitor Coutinho e Mário Silésio, ambos atravessando uma fase de renovação muito aguda e pessoal, de Maria Helena Andrés e Marília Giannetti, com trabalhos muito interessantes e dignos de ver, e ainda produções de Alinda, uma jovem que muito promete e possivelmente desenhos e escultura de Amilcar de Castro Filho. Você terá oportunidade de constatar que atravesso uma fase de mais domínio da difícil paisagem mineira e, sem abandonar Sabará e Ouro Preto, duas cidades que considero plasticamente as mais mineiras, me aventuro em banhar-me na Lagoa Santa, uma paisagem diferente, mais clara, carregada de luz, de fixação trabalhosa pela riqueza de cores. Dou graças a Deus por me sentir ainda com disposição para o trabalho e perceber que ele não tem sido inútil, terminou Guignard.